A pantomima da cloroquina

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O nome de Trofim Denisovich Lysenko costuma vir à tona quando se debate a interferência da ideologia na ciência. A cargo da agricultura soviética entre as décadas de 1930 e 1950, Lysenko negava a existência de genes e, para ampliar a produção, promovia uma versão do lamarckismo que tentava “educar” plantas a crescer em condições adversas, qual fossem “bons socialistas”.

O discurso ideológico e as fraudes de Lysenko – entre elas, proverbiais laranjas crescendo na Sibéria – levaram o próprio Josef Stálin a alçá-lo a postos de comando na pesquisa agrícola soviética. Enquanto milhões morriam de fome, Lysenko promoveu expurgos de todas as vozes discordantes e implantou nas fazendas coletivas métodos de cultivo incapazes de dar conta de alimentar a população.

“Durante as décadas em que Lysenko comandou a biologia soviética, seu método de pressão política na ciência e na prática agrícola falhou em aumentar o rendimento das plantas cultivadas”, afirma um artigo de 2017 sobre ele na Current Biology. “Lysenko fracassou em salvar milhões de cidadãos soviéticos da fome, especialmente na seca que levou à penúria de 1946-1947.”

A tentativa de criar uma “ciência de esquerda” estava obviamente fadada ao fracasso. Simplesmente porque não existe ciência de esquerda ou de direita. Genes são tão reais quanto o teorema de Pitágoras, as leis da física ou o aquecimento do planeta em virtude da emissão de gás carbônico. Fatos científicos, independentemente do que ache qualquer protótipo contemporâneo de Lysenko que habita o universo da política, não têm ideologia.

Impossível não lembrar Lysenko diante da pantomima que cerca a recomendação do Ministério da Saúde para o uso precoce das drogas cloroquina e hidroxicloriquina no tratamento da Covid-19. Não há, no documento de 14 páginas emitido ontem pelo ministério, a assinatura de nenhum médico responsável. Ninguém topou assumir o papel de Lysenko na defesa do indefensável.

Ao contrário, para que fosse feita a vontade do presidente Jair Bolsonaro, dois ministros tiveram de cair em meio à pandemia que gerou a maior crise na saúde brasileira em mais de 100 anos. No dia em que, pela primeira vez, o país registrava mais de mil mortes pela doença, Bolsonaro manifestou seu desdém numa frase jocosa: “Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”.

O novo coronavírus, naturalmente, não escolhe a ideologia da vítima, do mesmo modo como as plantas de Lysenko não poderiam crescer na Sibéria. Se a cloroquina for de fato eficaz contra o vírus, deverá estar acessível a todos, independentemente de ideologia. Até o momento, contudo, o que se sabe sobre o assunto é insuficiente para alterar a recomendação anterior do ministério, referendada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

Qual a novidade do novo protocolo? No discurso oficial, é a recomendação ao uso precoce da droga, mesmo quando o paciente apresenta sintomas leves. Só que a decisão do CFM emitida em abril, adotada no protocolo anterior do ministério, já aceita o uso em casos leves de Covid-19, desde que sejam descartadas outras moléstias e desde que haja o aval explícito do paciente, reconhecendo a inexistência de comprovação científica da eficácia.

Embora não traga a assinatura de um só médico, o documento com as novas orientações do ministério apresenta 76 referências científicas para justificar a nova recomendação. É uma colagem desleixada, com várias referências repetidas, a maioria estudos antigos sobre o uso da cloroquina noutras doenças. Apenas 35 dizem respeito à Covid-19 especificamente. Dessas, 8 são anúncios de testes em andamento – dois deles no Brasil (com apoio do laboratório EMS, que vende a droga) – ou recomendações de entidades como o CFM ou seus congêneres europeu, britânico e americano.

Há estudos sobre mecanismos moleculares, sobre o efeito da doença em grávidas e três resultados de experimentos in vitro. Outros três estudos fazem uma revisão de literatura sobre o assunto, sem trazer novidade. Dois apenas incluem a cloroquina numa lista de várias drogas promissoras. A maioria dos artigos citados está ainda em fase preliminar e não passou pelo ritual científico de revisão pelos pares.

Especificamente sobre o uso precoce da droga – em tese, a novidade do novo protocolo –, há exatamente quatro referências. A primeira é a recomendação genérica das autoridades chinesas em favor do uso em qualquer caso (não só precoce). A segunda é uma pesquisa chinesa com 30 pacientes que recomenda “estudo com amostra maior para investigar os efeitos da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19”. A terceira é um estudo espanhol de observação, que ainda não passou por revisão e verificou benefícios num grupo de 166 pacientes.

A quarta referência é um estudo chinês que já passou pela revisão – e, curiosamente, aparece na lista do ministério ainda na versão preliminar. Publicado no British Medical Journal (BMJ), ele não detectou benefício algum no uso da cloroquina em casos leves ou moderados da doença.

Mais importante do que as 76 referências citadas são as ausentes, em particular as que já passaram por revisão e saíram nas melhores revistas médicas. Outro estudo no BMJ não constatou benefício para pacientes que precisam de oxigênio. Uma pesquisa na revista da Associação Médica Americana (Jama) com 1.438 pacientes não verificou nenhuma redução na mortalidade com o uso da droga. Um terceiro relato, no New England Journal of Medicine, também não viu nenhum benefício na análise do caso de 1.446 pacientes, novamente em Nova York.

A maior lacuna na bibliografia do Ministério da Saúde é o artigo de pesquisadores brasileiros publicado na Jama no final de abril. Os cientistas tiveram de interromper testes em Manaus, em virtude do agravamento da codição cardíaca dos pacientes. “Descobertas prelilminares sugerem que uma alta dosagem de cloroquina não deve ser recomendada para o tratamento da Covid-19 severa”, escreveram. Não se trata, é bom ressaltar, de resultado sobre uso precoce.

Ciência é assim: progride lentamente, de estudo em estudo. Resultados não são definitivos, sempre estão sujeitos a contestação posterior. A dúvida é maior que a certeza. Os melhores cientistas sabem reconhecer a própria ignorância diante de desafios novos, como a Covid-19.

É natural, diante do quadro devastador das mortes e da incerteza, que a esperança se debruce sobre drogas já aprovadas para outros usos, como cloroquina, remdesivir ou tocilizumab. Por ora, porém, nada existe de conclusivo nem de revolucionário que justifique a mudança nas orientações do ministério. A única justificativa é política e ideológica. De Galileu Galilei a Lysenko, a história da ciência está repleta de exemplos de como e por que a intromissão mesquinha da ideologia na ciência costuma dar errado – e acaba por ceifar ainda mais vidas.