Proposta de redução da maioridade penal perde força com eleição de Lula

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Redução da maioridade penal no Brasil, tema que voltou a ganhar destaque, no mês passado, por causa de defesas da medida feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e pelo governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), não está entre as propostas que o Congresso Nacional pretende analisar neste fim de legislatura e, apesar de dever pautar conversas de parlamentares na próxima, perde força para avançar com a vitória de Lula (PT) na eleição presidencial.

 

O petista, assim como outros nomes influentes no PT, se posicionou publicamente contra a medida no passado e, na campanha de 2022, Lula não tocou no assunto. Ao contrário de Bolsonaro, que, no dia 9 de outubro, em entrevista a jornalistas, disse que a redução da maioridade penal no território brasileiro, atualmente em 18 anos, seria uma de suas prioridades em um eventual segundo mandato. Conforme ele, a maioria da população é favorável à medida e acredita ser uma pauta possível. Uma eventual redução, pontuou, inibiria “marmanjos de 16, 17 anos cometerem crimes aí fora com a proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente”.

Na véspera do segundo turno, o atual chefe do Executivo federal divulgou uma carta com 22 promessas para se fosse reeleito, e a primeira era “reduzir maioridade penal para crimes hediondos, como estupro, homicídio e latrocínio”. O candidato bolsonarista ao Palácio dos Bandeirantes, Tarcísio de Freitas, por sua vez, afirmou em debate da Band que seu governo trabalhará “para reduzir no Congresso Nacional, usando a liderança que o estado de São Paulo tem, a maioridade penal”. A defesa da medida foi levada à televisão por ele e Bolsonaro em inserções também.

Para fazer a redução, como propõem os dois políticos, é necessária uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Isso porque, conforme o artigo 228 da Carta Magna de 1988, “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos”. No Brasil, a maioridade penal em 18 anos foi estabelecida pela primeira vez com o Código de Menores de 1927. O Código Criminal do Império (1830) e o Código Criminal da República (1890) a previam aos 14 anos.

O deputado federal reeleito Carlos Jordy (PL-RJ), coordenador da Frente Parlamentar Mista da Redução da Maioridade Penal — criada em 2019 –, relembra haver uma PEC (171/93) em tramitação no Congresso para promover a mudança. Ela foi aprovada na Câmara em 2015 e encontra-se no Senado. Conforme Jordy, em 2023, com a nova configuração do Congresso, será possível aprová-la na Casa: “nós temos 41 senadores que são mais alinhados com o presidente Bolsonaro, e tendo uma nova presidência no Senado que seja alinhada conosco, temos tudo para avançar com essa matéria e finalmente efetivar a redução da maioridade penal”. A afirmação foi feita ao SBT News no final de outubro.

Problemas

De acordo com especialistas, a redução da maioridade penal traz diferentes riscos e não é uma medida efetiva para a diminuição da criminalidade no país. A doutora em sociologia e líder do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), professora Jacqueline Sinhoretto, alerta que todos os estados brasileiros possuem superlotação carcerária e que colocar a faixa etária menor de 18 anos (isto é, pessoas com uma experiência de vida não “tão consolidada”) nos presídios junto aos maiores de 18 que estão cumprindo pena terá “um impacto na promoção de agravamento da superlotação”. Além disso, os adolescentes seriam expostos “à influência de facções, que nós sabemos que existem facções em quase todos os estados brasileiros operando nos presídios”. Dessa forma, avalia a professora, nos espaços socioeducativo, “o tipo de abordagem que é feito com esses jovens [que cometeram atos infracionais], desenhando um planejamento da vida com respeito à lei, reforçando os vínculos dele com a família, reforçando os veículos com a escola, reforçando cursos de profissionalização e um desenho de um projeto de vida, é um tipo de atenção muito mais interessante”.

O advogado criminalista Bruno Viana, integrante do Grupo de Estudos Avançados do IBCCRIM – Rio de Janeiro em Erro Judiciário de 2021, faz uma análise similar. Em suas palavras, “quanto mais pessoas encarceradas, mais crimes, porque a prisão é criminogênica”. “Prisão gera mais crimes. Você vê o jovem que entra dentro de uma cadeia logo vai ser cooptado por uma facção criminosa e vai depender disso para o resto da vida. Então [a redução da maioridade penal] é uma medida que me parece irracional”.

Outro fator que o leva a entender a redução como “irracional”, pontuou em entrevista ao SBT News, é que não existe correlação entre a medida e uma queda da criminalidade. “Aqueles que defendem essa proposta partem de um raciocínio que não é adequado. Que seria meio que uma lógica de que a pessoa quando pratica um delito, passa na cabeça dela uma relação de custo-benefício, como se fosse algo do mercado. Essa relação seria que aumentando o custo, a pena, a possibilidade de ser preso, a pessoa acabaria refreando, falando ‘Ah, eu não vou praticar esse crime aqui porque eu posso ser punido de uma tal forma’. O que a pesquisa acadêmica demonstra, principalmente na criminologia, é que não existe esse tipo de correlação”, ressalta.

Segundo a professora de direito do Insper e pesquisadora-associada ao Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP Mariana Chies Santos, até o momento, as evidências científicas apontam que reduzir a maioridade penal não terá “papel relevante” em diminuir a criminalidade no Brasil. “Ao contrário. A gente vai colocar mais pessoas dentro de presídios que são extremamente lotados, a gente tem um hiperencarceramento hoje em curso no Brasil, além de todos os problemas de ordem prática, como insalubridade, ausência de alimentação. Então, na verdade, a gente sabe também que é de dentro dos presídios que saem os grupos organizados criminais”, acrescenta.

Outro fator que enfraquece uma afirmação de que reduzir a maioridade penal no Brasil levará a uma queda da criminalidade, fala Mariana, é que, pelos dados das secretarias de segurança pública do país, os adolescentes são as principais vítimas da violência, e não quem mais comete atos contrários à lei penal. Ainda de acordo com a especialista, se o país fizer a redução, ficará em “descompasso ao nível internacional”, pois a maioria das nações tem a idade fixada em 18 anos. “Aqui na própria América Latina, que são contextos mais parecidos com o nosso, como a Argentina, Uruguai, Colômbia, por exemplo. Países como a França, como Alemanha também. A Alemanha ainda tem um sistema um pouco mais interessante, porque ela tem uma Justiça especializada também dos18 aos 21, então mesmo que ele já seja maior de idade ele tem ainda até os 21 para ir para um sistema específico”, explica.

Em sua visão, defender a redução da maioridade configura ainda “um discurso muito fácil”. “Vamos falar em mais punição e não vamos pensar em prevenir o motivo pelo qual as pessoas entram nesse mundo que a gente poderia dizer de cometimento de delitos, nessas trajetórias de infração. Então se a gente não prevenir, a gente não vai mudar nada, porque só punindo não adianta”.

O advogado criminalista e ex-delegado de polícia João Ibaixe Jr. também alerta para existência de riscos trazidos pela redução da maioridade penal. Segundo ele, “o mais imediato seria o aumento da população carcerária, que produzirá imediatos problemas de gerenciamento do sistema, o que afetará, ao final, o cidadão comum”. “Depois, se permitirá que a crime organizado aumente sua ‘mão-de-obra’ de forma mais facilitada ainda, dentro do próprio sistema carcerário”. Conforme os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o Brasil terminou 2021 tendo 670.714 presos em celas físicas em unidades prisionais estaduais e 510 em unidades prisionais federais.

Ibaixe Jr. ainda ressalta não existirem estudos “concretos de que a redução da maioridade penal traria melhoras no combate à criminalidade”. “A maioria dos países, inclusive europeus, segue a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (1989), que orienta para a idade de 18 anos. A tese é meramente retórica e demagógica”.

Melhora no combate ao crime

Refletindo sobre para quais medidas é preciso dar mais atenção do que à redução da maioridade penal ao se pensar em como diminuir a criminalidade no país, Bruno Viana pontua: “o crime passa por uma série de determinações que se interligam. Se a gente for pensar isoladamente nos crimes patrimoniais, uma determinação é a desigualdade social, a ausência de produtos para as pessoas se manterem. Se a gente for pensar do ponto de vista de prevenção e repressão, a gente tem que começar a pensar em instâncias melhores de vigilância, de policiamento adequado, iluminação nas cidades, que são mais controles de vigilância do que a gente ficar pensando nessa questão das penas, de punir, de levar mais pessoas ao cárcere”. A promoção da educação, cultura e esporte também são meios importantes para enfrentar a criminalidade, fala o especialista.

Na visão de Jacqueline Sinhoretto, para quem uma eventual mudança na maioridade para menos de 18 anos não faria sentido com o objetivo de diminuir os crimes também porque punição ocorre após o cometimento do delito. Para promover essa queda, em vez da medida, é eficiente “nós pensarmos em estratégias que possam incidir sobre essa juventude antes do envolvimento com o delito, com as redes criminais acontecendo”. “Para essa faixa etária em que a gente conhece de coisas de políticas de segurança que funcionam em outros países, estão muito mais ligadas a políticas de prevenção da violência com políticas públicas de juventude, procurando direcionar esses jovens para o desenvolvimento de suas carreiras, da arte, do esporte, do estudo, da ciência”.

Mariana Chies Santos, por sua vez, destaca a adoção de políticas preventivas não focadas em policiameno ostensivo. Isso significa, de acordo com ela, investir na tecnologia policial e nas próprias forças policiais. “Então aumento de salário, por exemplo, dos policiais pode ajudar bastante nisso [redução da criminalidade], porque eles vão ter uma estrutura melhor para trabalhar também. A gente precisa pensar em políticas preventivas de outras áreas, não só de segurança pública, então a gente pensa numa intersecção aí entre áreas como habitação, saúde, educação”, afirma.

Já para João Ibaixe Jr., a reestruturação do sistema carcerário e um aprimoramento do sistema de segurança pública são medidas importantes para fazer cair o número de crimes no país.

Contexto diferente

Sinhoretto, que, em 2015, trabalhou em análise de dados para subsidiar uma campanha contra a redução da maioridade penal, inclusive oferecendo subsídios de pesquisa para a Secretaria Nacional de Juventude, no governo Dilma Rousseff (PT), avalia ser “bastante controversa” a proposta legisiva de tornar menores de 18 anos penalmente imputáveis “na medida em que vem ser colocada agora em 2022 num contexto muito diferente de um contexto de violência que a gente teve no país anos atrás”. Nessa diferença, explica, está uma diminuição “muito grande” nos crimes cometidos contra a vida nos últimos anos na unidade federativa mais populosa do Brasil, São Paulo. Além disso, no estado, “esses casos tiveram uma concentração de vítimas na faixa etária entre 16 e 24 anos”. “A faixa etária entre os 16 e 18 anos é a que mais é vítima de homicídios no estado de São Paulo hoje. E essa faixa etária, por outro lado, tem cometido menos crimes. A Polícia Militar do estado de São Paulo tem feito apreensões na faixa etária dos adolescentes num número menor nos últimos anos. Vem caindo o número de adolescentes que cometem delitos, que são aprendidos pela Polícia Militar”.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, desde 2017 cai o número anual de apreensões de adolescentes no estado de São Paulo: foram 23.896 naquele ano, ante 26.877 de 2016; 19.467 em 2018; 18.063 em 2019; 13.088 em 2020; e 11.239 em 2021. No Rio de Janeiro, o índice diminui desde 2014: foram 11.189, ante 11.358 de 2013; 10.364 em 2015; 10.101 em 2016; 7.545 em 2017; 6.546 em 2018; 6.056 em 2019; 4.583 em 2020; e 4.185 em 2021.

Na avaliação de Bruno Viana, o sistema de penas para os menores de 18 anos “é bem grave”. “As pessoas ficam presas, ficam internadas. E tem toda a questão do estigma: uma vez que tem uma passagem pela polícia, o radar da criminalidade, o radar das agências de controle da polícia começam a visar a pessoa com passagem”.

Defesa

O coordenador da Frente Parlamentar Mista da Redução da Maioridade Penal, Carlos Jordy, diz não ter “dúvidas de que redução da maioridade penal é importantíssimo para reduzir a criminalidade no país, pois é uma medida que vai contribuir para a diminuição da impunidade, robustecer a Justiça no Brasil”. “Porque o que acontece hoje é que muitas famílias que são vitimadas por menores infratores, que perdem seus filhos para menores infratores, que tem suas filhas estrupradas por menores infratores ficam devastados pela impunidade que acontece nesses casos”.

Ele classifica a maioridade em 18 anos como um caminho “facilitado para que adolescentes entrem para a vida do crime”. Ainda de acordo com o deputado, a redução é uma das prioridades para diminuir a criminalidade no Brasil, mas “existem diversas medidas que devem estar em conjunto para melhroar a segurança pública, até mesmo a questão de aumento de presídios, construção de mais presídios”. “Óbvio que não é nada isolado que vai sanar o problema da segurança pública”.

Jordy defende ainda que, no caso de uma eventual redução, os menores de 18 anos presos fiquem separados dos criminosos acima dessa idade. “Nós teríamos que fazer adaptações nos presídios, fazer celas separadas de repente separadas e que eles tenham horários de convivência separados, na verdade eles não podendo ter ali o banho de sol ou o almoço no mesmo momento. Construção, de repente, de novos presídios também, em que esses presídios seriam somente para os menores de idade. São medidas que devem estar sendo estudadas e aplicadas também em conjunto com a questão da redução da maiordade penal”, complementa.