Violência obstétrica é comum, mas mães ainda relutam em denunciar descasos no parto em MS

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Violência obstétrica. É possível que, ao ler esta reportagem, muitas mulheres entendam que passaram por episódios de violência durante seus partos, que nem sabiam constituir um tipo de agressão. O assunto ganhou grande repercussão recentemente, após a influenciadora Shantal Verdelho, de 32 anos, acusar um médico de atos abusivos durante o nascimento do filho. É uma violência diária, em que, a cada bebê que vem ao mundo, a parturiente passa por humilhação, sofre xingamentos e até mutilações durante o parto.

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Relato de Shantal em suas redes | Reprodução

Shantal ganhou fama na internet, compartilhando rotinas de exercícios nas redes sociais. Ela tem mais de 1,6 milhão de seguidores que acompanham seu dia a dia. A gestação do segundo filho não ficou de fora. Mas, a divulgação de um arquivo de áudio que narra humilhações pelas quais passou no parto em setembro de 2021 provocou uma ruptura em seus conteúdos.

Em entrevistas, Shantal contou que o médico obstetra a xingou e disse palavras de baixo calão durante o parto. Após o nascimento, o obstetra teria chamado o marido da influenciadora para dizer: ‘Olha aqui, toda arrebentada’.

A narrativa chocou seguidoras e trouxe, mais uma vez, o assunto à tona, como um parto de violações de dignidades que a cada dia nasce nas maternidades Brasil afora.

Doutoranda em jornalismo pela UFSC (Universidade Federal de Santa Maria), Letícia Ávila levou a questão para as páginas do livro “Parto: Outro Lado Invisível do Nascer” (clique AQUI para ler ou AQUI para baixar), obra que conta com 11 capítulos, nos quais narra histórias de cinco mulheres de Campo Grande que sofreram violência obstétrica. Os outros seis capítulos explicam os campos jurídico, médico e social envolvendo o fenômeno da violência obstétrica.

“Resolvi falar sobre violência obstétrica porque sentia que o assunto era pouco conhecido e, como sempre, interessei-me pela área do direito da mulher. Achava que precisava — e que ainda precisa — ser mais visibilizado”, diz ao Jornal Midiamax. Ela explica que a violência obstétrica é qualquer atividade, procedimento, fala ou gesto que fira a dignidade, a saúde da mulher e do bebê nos processos de pré-parto, parto e pós-parto.

“A violência obstétrica pode ser cometida por um médico, um enfermeiro, pela equipe administrativa do hospital e também por todas as pessoas que, de determinada forma, exerçam um controle hierárquico sobre a mulher naquele momento de fragilidade em que ela está pra ter seu filho, em um ambiente desconhecido e até desconfortável, que são os hospitais e as salas de saúde”, explica.

Relatos são diários

Às vezes, o que era para ser um momento único na vida de uma mulher acaba se tornando um pesadelo para muitas. Como é o caso de Eliza*, de 24 anos, que conversou com o Jornal Midiamax. Ela teve o nome trocado na reportagem para preservar sua identidade.

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Letícia Ávila, autora de Parto: Outro Lado Invisível do Nascer | Divulgação

Eliza contou que, durante o nascimento do filho, já havia passado o tempo do parto. Em atendimento pelo SUS (Sistema Único de Saúde), ela relata que foi tratada com desdém e que sofreu muito para ter o primeiro filho. Primeiramente, ela procurou uma maternidade de Campo Grande, mas achou a equipe do local ‘grosseira’. Com receio, procurou um hospital.

“O médico foi grosso e fiquei com medo. Cheguei no hospital e eles queriam a todo custo que eu tivesse parto normal. Fiquei horas sofrendo e meu bebê não encaixava. Minha mãe buscava ajuda e eles não se importavam, parece que estavam lidando com animais. Depois de muito custo eles resolveram fazer uma cesárea e meu filho nasceu enorme, com mais de 4 kg. Ele não encaixava por falta de espaço. É horrível, eles acham que pelo fato de estarmos grávidas, temos que ficar sofrendo, é quase um ‘se engravidou, tem que aguentar e sofrer’. Eu implorava para realizarem uma cirurgia, mas não se importavam”, desabafa.

Mirtes*, de 25 anos, narrou à reportagem o suplício pelo qual passou em uma maternidade no dia 9 de janeiro de 2022. Ela, que também teve o nome trocado para preservar sua identidade, alega que, além de sofrer por horas durante o nascimento, o médico disse frases que a deixaram extremamente constrangida. “Tira a roupinha e volta peladinha” e “Só vou fazer cesárea se ela vir com o bebê caindo pelas pernas”, teria dito o profissional.

Mirtes destaca que passou por experiência acadêmica, na qual vários médicos e estudantes realizavam exame e toque. “Quando o estudante não conseguia, o médico fazia novamente, logo em seguida. Eu chorei na maca, me senti violentada. Quando eu tentava normal, mas não conseguia, eles me chamavam de fraca e que não estava conseguindo de propósito”, relata.

A jovem ainda ressalta que desmaiou seis vezes devido às dores. Ela implorava por uma cesária, mas o médico dizia: ‘Você tem o direito de querer cesárea e eu de fazer normal’.

“Teve um momento, logo quando eu cheguei, que ele disse pra eu tirar a roupa e voltar peladinha. Fui ao banheiro e fiquei muito constrangida, voltei e perguntei o que ele iria fazer. Ele disse que iria fazer o toque e ouvir o batimento cardíaco do bebê. Foi quando eu pedi cesárea. Ele ficou nervoso e nem o batimento do meu filho ouviu, pediu para a menina que estava com ele colocar na minha ficha que eu neguei receber atendimento médico”.

A humilhação na sala de parto continuou, segundo a jovem. Quando tomou anestesia, ainda estava sentindo tudo. Ela afirma que alertou a equipe, mas teria sido chamada de mentirosa pelo anestesista.

“Ele disse pra eu parar de mentir, precisei mexer meu pé para provar o que eu estava falando. Minha bolsa já tinha estourado, mas, mesmo assim não conseguia ter normal. Meu filho nasceu muito grande, mas, eles me fizeram sofrer até o último segundo. A equipe demorou tanto para fazer a cesárea que meu filho chegou a defecar dentro de mim e engoliu água do parto. Ele não chorou quando nasceu. Tive começo de hemorragia. Sofri tanto que parecia que estava em outra órbita. Foi humilhante, e eles não podem tratar as pessoas assim. Um momento que era para ser feliz foi traumatizante”, lamenta.

Informar é necessário

Violência obstétrica ganhou importância na área jurídica em junho de 2019, quando, após recomendação do MPF (Ministério Público Federal), o Ministério da Saúde acatou o direito de parturientes usarem o termo para retratar abusos durante o nascimento dos filhos. Antes disso, o que havia era uma nota técnica da pasta se manifestando contra o termo. O CFM (Conselho Federal de Medicina) endossava a não utilização, por estigmatizar o ramo da obstetrícia.

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A defensora pública por MS, Thais Dominato | Foto: Divulgação

Ainda assim, as humilhações e violências físicas às quais milhares de mães são submetidas todo ano são normalizadas, o que interfere na formalização de denúncias. Defensora Pública por Mato Grosso do Sul, Thaís Dominato explica ao Jornal Midiamax que mulheres, de forma geral, ainda têm receio de denunciar quando sofrem violência obstétrica. Segundo ela, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul ainda recebe pouquíssimas denúncias, e o órgão trabalha para informar as vítimas para que elas saibam que devem procurar seus direitos.

“A Defensoria vem, desde 2017, desenvolvendo o trabalho de capacitação e informação no combate à violência obstétrica. Queremos informar as mulheres e encorajá-las a denunciar os casos. A mulher sabe que algo errado aconteceu, mas, ela não sabe que aquilo que passou é um tipo de violência e que, inclusive,  pode entrar com uma ação de reparação moral e material. Precisamos informar essas vítimas sobre o que é violência. Só com a denúncia os casos podem diminuir”, pontua a defensora.

Em março de 2021, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul criou uma cartilha para informar a população sobre a violência obstétrica e como denunciar (clique AQUIpara ler). Na época de lançamento, Thais destacou a importância do material produzido com a finalidade de contribuir com o acesso à informação.

“Esperamos que, por meio dessas cartilhas, possamos ajudar as mulheres no esclarecimento e principalmente no encorajamento para que evitem violências a partir do conhecimento dos seus direitos”, conclui.